terça-feira, 29 de março de 2011

Os "benfeitores" do povo líbio

Outro dia um grande amigo me contestou por criticar a invasão da Líbia dizendo que o Obama, Sarkozy, Berlusconi e Cia agiam em defesa da população que estava sendo massacrada por Kadafi. Argumentei que não era bem assim, que ali há interesses econômicos que falam mais alto que o "bom mocismo" dos chamados "aliados", que o interesse de verdade é no petróleo e que de quebra a indústria bélica ainda fatura um pouco mais. Não o convenci e ao final ele disse que não vê outra solução a não a retirada de Kadafi e que, se fosse ele, faria o mesmo que o Obama. Ontem li a coluna do ex-juiz Wálter Maierovitch na revista Carta Capital e achei que deveria fazer mais uma tentativa de levar meu amigo, um leitor deste blog, à reflexão. Aproveite você também, leia e refleita sobre o humanismo dos bombardeios cirúrgicos.


Entre tapas e beijos

A propósito, a pena de morte está prevista na legislação da Líbia desde 1969, quando o então capitão Kaddafi promoveu o golpe que derrubou o soberano Idris, responsável pela proclamação da independência em 1951.
O premier britânico, David Cameron, pensa diferente dos rebeldes e deu canhestra interpretação à Resolução 1.973 das Nações Unidas, aquela que autorizou a intervenção humanitária e que contou, no início, com o aval da Liga Árabe, com exceção de dois Estados dela membros, Argélia e Síria. Assim, um ataque britânico destruiu, em Trípoli, toda parte residencial do complexo de Bab el-Aziziya. A meta era, efetivamente, matar Kaddafi. Nos primeiros três dias de intervenção, atuaram três comandos (EUA, França e Reino Unido), cada um a agir por si e a livremente interpretar a resolução das Nações Unidas.
Como sabem todos os grãos de areia do deserto líbio, o conflito a produzir um mar de sangue estava localizado na antiga região da Cirenaica, onde fica Bengazi, o berço da revolta e das reservas de petróleo e gás. Na velha região da Tripolitânia, sob domínio de Kaddafi, não existe conflito. Portanto, o ataque britânico a Bab el-Aziziya nada teve de humanitário. Só que Kaddafi, escaldado, lá não estava.
Em 5 de abril de 1986, um ataque terrorista financiado e ordenado por Kaddafi matou 229 frequentadores da discoteca La Belle, em Berlim Ocidental. Dentre os mortos estavam 50 militares norte-americanos que lá se divertiam. Como represália, o presidente norte-americano Ronald Reagan determinou o bombardeamento da residência de Bab-elAziziya. Avisado pelo ex-premier italiano Bettino Craxi, Kaddafi conseguiu deixar a residência, mas sem tempo de tirar sua filha adotiva de 16 anos. Sem Kaddafi, não haveria garantia de abastecimento de gás e petróleo para a Itália.
A Resolução 1.973 foi concebida num momento em que havia uma guerra civil e as forças militares de Kaddafi, próximas a Bengazi, tinham matado mais de 180 civis num único dia. A resolução “autoriza o emprego de todas as medidas necessárias a proteger as populações civis e as zonas habitadas por civis.”
No campo do direito internacional, pode-se discutir a sua pertinência em face de uma revolta interna, da violação ao princípio do Estado soberano e da autoderminação dos povos. No entanto, o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos permite a intervenção para a defesa da pessoa. Como frisou Massimo D’Alema, ex-premier e ex-ministro de Relações Exteriores da Itália, “a intervenção era justa. Vidas humanas foram poupadas e a ofensiva de Kaddafi levaria a um massacre de civis inocentes”. O problema, ressalta D’Alema, está na falta de definição de objetivos e no protagonismo e precipitação de Sarkozy, que se gaba de ter evitado o massacre em Bengazi.
Nesta quadra, convém registrar que França, Itália e Reino Unido sempre tiveram interesse na região. Em 1911, ela foi tomada pelos italianos do Império Otomano por 30 anos. De 1943 a 1951, ficou sob desfrute de um consórcio formado por França e Inglaterra. Por outro lado, impor uma no-fly zone para cumprir a resolução da ONU não implicava partir de pronto para um bombardeamento, voltado à destruição dos meios e das forças militares de Kaddafi. Medidas de persuasão deveriam anteceder os ataques. Mas nem o controle de fronteira com o Chade, onde são arregimentados os mercenários por Kaddafi, foi realizado. E nem se cogitou em abater apenas os caças que decolavam.
Com o fim da Guerra Fria, Kaddafi mudou de lado. Logrou levantar embargos e despejar pelo planeta dinheiro de cinco fundos soberanos da Líbia. Apenas na Europa, o país mandou investir 340 bilhões de dólares e chegou a evitar a falência da Fiat. Hoje, o Reino Unido é o maior dependente financeiro dos fundos líbios.
Uma pequena amostra dos receptores de dinheiro líbio: nos EUA, Xerox, Pfizer, Halliburton, Mobil e Chevron; na França, Electricité de France (EDF) e Alcatel-Lucent; na Alemanha, Siemens; no Reino Unido, Shell-Royal Dutch, Vodafone, Glaxo SmithKline, Person, Standard Chartered e BP; na Itália, ENI (energia), Unicred (segundo maior banco) e Finmeccanica.
De repente, fala-se em derrubar Kaddafi para implantar democracia e permitir liberdades individuais e públicas. Antes, Kad-dafi era incensado e plantava barracas em Paris e Roma. E o amigo dos ditadores, Sarkozy, agora assume o papel de protagonista de uma farsa para encobrir interesses econômicos e eleitorais. No Bahrein, na Jordânia e na Arábia Saudita, os ditadores convêm e o povo não adianta esperar por uma Resolução 1.973. A secretária Clinton queria o diálogo e não a queda de Mubarak.

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