sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Água boa de ler

Ano passado eu fui assitir ao filme "O Homem que Engarrafava Nuvens", no Cine Ceará e saí maravilhado com aquele documentário muito bem dirigido pelo Lírio Ferreira (já havia dado show em filmes como Baile Perfumado e Árido Movie). Muito mais do que falar sobre a vida de Humberto Teixeira, faz um apanhado histórico capaz de deixar qualquer um cheio de água boa nos olhos. Ontem encontrei a jornalista Ana Karla Dubiela no Bar do Arlindo e começamos a conversar sobre crônicas - uma paixão dela que é apaixonada por Rubem Braga - e escritos. Prosa indo, prosa vindo, ela me falou dum texto sobre o dito filme. Cuidei logo de pedir que ela me mandasse que já tinha um lugar reservado pra ele nesse blog. Nem tinha lido, mas sabia que podia confiar no talento da moça (pura força de expressão!). Olhe aí seu eu num tô com razão e se num vai lhe dar uma vontade danada de catar um cinema onde a película esteja em exibição. Talvez um esforço inútil por contada concorrência dos chamados "bloquibusteres", mas que a Ana lhe deixou com vontade de ver deixou.


Humberto Teixeira: o baião de água boa


Iguatu quer dizer água boa, e água boa dá belos frutos. Um exemplo é o primo de meu pai, aquele homem que engarrafava nuvens: Humberto Teixeira. Desde criança, costumava ouvir histórias sobre este meu conterrâneo poeta. E essas histórias, como a brincadeira de telefone-sem-fio, chegavam até nós mal contadas e distorcidas. O documentário O homem que engarrafava nuvens, um sensível resgate de sua filha Denise Dumont, tenta fazer justiça a ela própria, a sua mãe Margarida Jatobá e também à memória do compositor cearense, que hoje divide o reinado do baião com o mestre Luiz Gonzaga.

O filme tem um certo olhar estrangeiro sobre o sertão nordestino, o que permite que se fuja, especialmente em algumas cenas, dos surrados estereótipos que reencontramos incontáveis vezes nas biografias de personagens nordestinos. A cantoria de Asa Branca, ainda mais lírica na voz de Maria Bethânia (e mais sofrida na versão do jovem e descabelado Caetano), traduz este olhar forasteiro numa das mais belas imagens do filme: os cavaleiros em slow motion, em verdadeiros animais encantados, que jamais teriam a mesma plasticidade se retratassem fielmente o cotidiano dos nossos vaqueiros.

Esse olhar de quem saiu do Nordeste ainda jovem para tentar a carreira de atriz no Rio de Janeiro e depois em Nova Iorque, revelado constantemente por Denise Dumont nas duas horas de projeção do documentário que produziu é, ao mesmo tempo, a virtude e o pecado da história. Não se pode negar que as raízes de Humberto Teixeira e do próprio baião ganharam um colorido e um contexto dignos de quem compôs nada menos que 400 canções, que ficaram na história da música brasileira. Por outro lado, a vida pessoal de Humberto Teixeira fica ainda mais misteriosa, salvo por sua predileção pelas mulheres de olhos verdes, bem registrada em “Kalu” (tira o verde desses ói de riba d'eu...).

Poucos nomes de nossa música ficam de fora da homenagem a Humberto Teixeira: além de Bethânia e Caetano, Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Bebel Gilberto, Dalva de Oliveira, Lenine, Alceu Valença e Cordel do Fogo Encantado, Carmem Miranda, David Byrne. A lista é longa e a direção musical de Guto Graça Melo, primorosa. O baião ganha versões japonesa, italiana e inglesa (na incomparável voz de Bebel Gilberto, interpretando “Juazeiro”), dialoga com o rock (Raul Seixas), o reggae, a bossa nova. O passeio histórico-musical do baião, no país e fora dele, é um ótimo motivo para se ver O homem que engarrafava nuvens.

Além de um reconhecimento ao trabalho bem menos visível do que talentoso de Humberto Teixeira, o filme lança fogo sobre as historinhas de família que diziam que Denise Dumont não usava o sobrenome Teixeira porque ele não era “artístico”. Não é bem assim: o próprio Humberto quis que ela retirasse o Teixeira do nome se resolvesse seguir a carreira de atriz, profissão que ele, publicamente, desaprovou. Depois de tantos anos de uma conflituosa (“próxima e distante”) relação com o pai, Denise Dumont (ou Teixeira) consegue provar, com o documentário, que o mito Humberto Teixeira é bem diferente de seu pai Humberto. E que aquela menina, Denise Dumont (ou Teixeira), na contramão da vontade do pai, amadureceu e agora se revela mais um talento da safra de Água Boa.



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